segunda-feira, 10 de maio de 2010

Terri morreu: as dúvidas continuam

O fim da agonia da americana que passou quinze anos em estado vegetativo esquenta o debate sobre os limites aos quais se deve chegar para prolongar a vida de doentes com danos cerebrais ou em estado terminal.

Faz parte da cultura ocidental pensar o menos possível na morte. E nada na própria morte. O caso da americana Terri Schiavo obrigou todos que acompanharam sua agonia pelo mundo a pensar naquela que pode ser a mais sombria das decisões: como gerenciar a própria morte. Graças ao avanço da tecnologia e do conhecimento médico, as pessoas se vêem confrontadas com o poder de decidir como querem morrer e em que situações vale a pena ser mantido vivo. Terri passou quinze anos em estado vegetativo, o que significa que ela estava inconsciente e incapaz de realizar qualquer movimento voluntário. Seu córtex cerebral, a área do cérebro em que ocorre a consciência, havia sido destruído pela falta de oxigênio decorrente de parada cardíaca. Esse tipo de dano é irrecuperável. Três semanas atrás, depois de uma longa batalha judicial entre seu marido, Michael, e seus pais, Mary e Robert Schindler, a sonda de alimentação que mantinha Terri viva foi retirada. Ela morreu na quinta-feira passada, de inanição e desidratação, aos 41 anos. Michael sustentava que seria essa a vontade de Terri, se ela estivesse consciente.

A discussão que o drama de Terri despertou pode ser sintetizada em duas perguntas: a vida é sagrada e inviolável sob qualquer circunstância? Ou, ao contrário, só faz sentido manter alguém vivo enquanto houver resquícios daquilo que é a essência do ser humano: seu jeito de ser, suas memórias, suas opiniões, sua relação com o mundo? A resposta para essas questões pressupõe a solução de uma dúvida ainda mais profunda: o que é a vida? No caso de um animal, do mais simples besouro ao soberbo elefante africano, trata-se basicamente de um conjunto de funções vitais e biológicas. Já a vida humana é definida pelas mesmas características fisiológicas somadas a tudo aquilo que faz cada um de nós um ser único, com a capacidade de escolher e de pensar. O tema se adensa porque é necessário decidir qual desses aspectos é prioridade. Em outras palavras, o ser humano tem o direito de decidir qual vida tem valor e qual é descartável?

O debate é profundo, complexo, desafiador. Não tem respostas simples. Não tem solução satisfatória. Nas discussões travadas nos tribunais americanos havia o eco de Aristóteles, que ajudou a moldar o pensamento cristão apesar de ter morrido 300 anos antes de Cristo. O filósofo grego via a existência humana como um fim em si mesma, e por isso não podia jamais ser violada. Do outro lado, sentia-se a influência do pensador René Descartes, do século XVII, cuja frase mais conhecida é "penso, logo existo". Significa definir a vida não por sua existência biológica, mas pela consciência. Por razões práticas, a medicina moderna precisou definir a vida e a morte em termos técnicos. O conceito aceito é que a vida humana está guardada dentro do crânio – mais exatamente no encéfalo, formado por cérebro, cerebelo e tronco cerebral. Uma pessoa é considerada viva enquanto seu tronco cerebral, a parte do encéfalo que controla as funções básicas do corpo, como batida do coração e respiração, está funcionando. Era o caso de Terri. Apesar de o córtex cerebral estar destruído – e com ele qualquer resquício de pensamentos, as memórias e a consciência –, ela respirava sem ajuda de aparelhos.



Aí está uma contradição da medicina moderna. A morte encefálica, que define quando um paciente pode ou não ser declarado morto, existe sempre que há a destruição do tronco cerebral, mas não necessariamente do córtex. Isso equivale a sobrepor a vida biológica à vida pessoal. "Nenhuma das qualidades intrínsecas ao ser humano reside no tronco cerebral, da mesma maneira que não está nos rins nem na coluna espinhal. Então por que a morte de um ser humano é definida pelo estado de seu tronco cerebral?", questiona o biólogo americano William R. Clark no livro Sex and the Origins of Death (O Sexo e as Origens da Morte). A explicação para isso está nos avanços médicos das últimas décadas. Até 1950, considerava-se que alguém morria quando parava de respirar ou quando o coração não batia mais, o que, de qualquer forma, seria verdade em questão de minutos. Com a invenção do desfibrilador, equipamento que permite reanimar um paciente com parada cardíaca, e dos aparelhos de respiração assistida, a definição de fim da vida teve de ser mudada.

O conceito de morte encefálica permite que o atestado de óbito seja assinado quando o coração ainda está batendo, o que é fundamental para conseguir órgãos para transplantes. Em países com boa estrutura de saúde, as pessoas podem prever com grande probabilidade de acerto que morrerão em um hospital, cercadas de fios e tubos. A parafernália tecnológica, ao mesmo tempo que ajuda a curar doenças, também é capaz de prolongar o processo de morte, transformando os pacientes em virtuais prisioneiros da vida. No início do século passado, entre o momento do diagnóstico de uma doença fatal e a morte propriamente dita, passavam-se em média cinco dias. Hoje, esse tempo passou a ser de cinco anos. A verdade é que os médicos também se tornaram reféns da possibilidade de prolongar a vida até onde isso for possível. O fenômeno é chamado de "obsessão terapêutica" e pode ser visto como uma tentativa de "curar" a morte, como se ela fosse uma doença e não uma parte natural e inevitável da vida.

Na tentativa heróica de salvar um paciente, o médico pode se ver tentado a aplicar tratamentos desproporcionais, que não vão reverter o quadro de saúde do doente, mas apenas tornar mais lento o processo que o levará à morte, e muitas vezes causa grande sofrimento físico e psicológico. É nesse ponto que uma pessoa se vê obrigada a decidir sobre a própria morte – ou, se estiver inconsciente, seus parentes e médicos terão de escolher por ela. Trata-se de uma das decisões mais difíceis da profissão médica – e de um pesadelo para a família do doente. A maneira mais comum de evitar mais sofrimento é optar por não reanimar nem colocar um respirador artificial em um doente em estado terminal, caso ocorra uma parada cardiorrespiratória. Não se trata de praticar eutanásia, mas de deixar que a natureza siga seu curso, depois que todas as possibilidades de cura foram esgotadas. "Ninguém é obrigado a aceitar um tratamento que não lhe traz benefícios", diz a médica e jurista baiana Maria Elisa Villas-Bôas, autora do livro Da Eutanásia ao Prolongamento Artificial. "No caso de um paciente que perdeu a consciência, no entanto, a decisão deve ser sempre baseada no que seria melhor para ele, e nunca no ônus social e econômico que representa prolongar sua vida, por estar ocupando um leito de UTI", diz Villas-Bôas.




Por: Diogo Schelp

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